Novos Retratos de Família

por: Jobis Guerra

Ela me conta, via chamada de vídeo:

“a vida toda vi o “retrato de família” dos meus avós, e sempre tinha isso como ideal de felicidade, sabe? A minha avó aparecia elegante, bem disposta, com uma escadinha de três cabeças ao seu redor, com meu avô com o braço passado pelos seus ombros, com um portão grande, de ferro trabalhado, ao fundo. Olhando aquilo, era como se eles fossem a receita certa para atravessar aqueles portões, que seriam o da Felicidade, prometendo uma vida plena”.

Secularmente fomos ensinados que as famílias ideais se compunham de pai, mãe e filhos, preferencialmente um casal deste último. Casais sem filhos eram uma incongruência incompleta; filhos sem pais eram enjeitados bastardos: se você não tinha um nome, não tinha nada. Além disso, a união deveria ocorrer entre pessoas parecidas em idade, região geográfica e condição econômica. 

Sempre vale destacar que esse ideal não se baseava na satisfação dos envolvidos, ou como exatamente viveriam todos que, por qualquer motivo, terminassem nas margens dessa moldura familiar.

Especialmente para as mulheres, os padrões eram bem rígidos e difíceis de atingir. Um talhe formoso, modos femininos, disposição e submissão na mesma medida, fizeram com que muitas fossem sumariamente classificadas com epítetos tão conhecidos de todos nós, que não há necessidade de repeti-los, para que se compreenda a que nos referimos. 

A conexão congela. Eu peço que ela repita:

“Eu estou dizendo que logo entendi que isso não era pra mim. A casa da minha avó sempre era imaculada, e, quando eu saí de casa pra estudar fora, nunca achava tempo para manter tudo tão arrumado, ainda mais porque os horários eram insanos e as outras meninas que dividiam o apartamento, colocavam a ordem do lugar apenas no patamar de evitar uma proliferação de uma falna insalubre. Quando minha mãe foi me visitar, declarou que eu vivia em um chiqueiro e que nunca encontraria um bom marido desse jeito. Estávamos nos anos 80 e eu me via presa entre dois mundos. De um lado, o ideal da minha avó. Do outro, ante a constatação crescente de que eu não era boa o bastante para isso, o questionamento que se impunha: o que eu vou fazer do resto da minha vida? Eu não servia pro que esperavam de mim, mas onde eu me encaixaria?”

Nas margens dessa moldura perfeita, muralhas de preconceito, invisibilidade e solidão uniam-se aos sofrimentos inenarráveis de quem coube nesse ideal, mas jamais encontrou nele a felicidade prometida. É que a realização não reside em estruturas fixas, mas em aspectos, muitas vezes, invisíveis aos olhos. ASSIM é QUE “TER UM BOM CASAMENTO” NEM SEMPRE REDUNDA EM “TER UM CASAMENTO BOM”.

“Quando eu estava noiva, diziam que o dia do meu casamento seria o dia mais feliz da minha vida. Então eu esperei até o fim que a tal felicidade prometida chegasse. Teve chuva de arroz, teve champanhe, teve o carro do Luis Cláudio todo amarrado com latinhas e tampinhas de garrafa. A gente ia passar a lua de mel num hotel. No que eu fui trocar de roupa, o Luiz dormiu e eu ocupei meu lado da cama sozinha. A tal felicidade faltou.

Daí disseram que o dia que nascesse meu primeiro filho seria o dia mais feliz da minha vida. Não foi. Naquela época, eu detestava meu marido e sentia culpa por isso. O bebê era uma obrigação que me mantinha afastada do trabalho que eu lutei tanto pra conquistar. Acabei saindo do emprego mesmo. O retrato de família da minha avó me parecia cada vez mais distante, sabe? Talvez eu não fosse mulher o bastante pra merecer. 

De repente eu tava com dois filhos e infeliz. Meu marido era uma coisa que eu tentava empurrar pra mais longe que podia. Eu sabia que não era uma boa mãe pros meus filhos, porque eu não os queria, de verdade. Quero dizer, eu tinha por eles todo o amor feroz que é pra se ter, mas queria também viver pra mim. Queria ter planos que fossem só meus, pelo menos alguns. Eu era a centinela que ficava em casa velando para a vida da minha família dar certo. Esperavam que isso fosse o auge, a plenitude para mim, só que não era.” 

Um fenômeno tem crescido em frequência e extensão e atraído cada vez mais a atenção, tanto dos observadores, quanto dos estudiosos das Ciências sociais. Alguns o chamam de “famílias polvo”; outros de “famílias atualizadas”, mas quem vive raramente se fixa em nomear, já que está seriamente  ocupado em viver, mesmo. 

“Então, hoje eu moro com a Tati faz uns dez anos. Os meus filhos foram cada um pro seu lado. São muito mais apegados ao pai que a mim. Eu fiquei muito mal quando ele arrumou outra. Eu meio que achava que, se eu tinha que sofrer, ele não podia ter alegria em lugar nenhum. Minha amiga é mãezona, maternal mesmo, e tinha três filhos. Daí eu trabalhava e, de noite, ajudava ela com os meninos, pra ela descansar, sabe? Meus filhos têm uma mágoa, que eu liguei mais pros filhos da Tati que pra eles, só que ali eu não precisava ser perfeita, podia ser eu mesma. Já estava fora do esquema. Já era separada e tudo o mais.”

A moldura dessa nova estrutura é justamente não ter moldura. a regra não se baseia nas convenções, mas na construção afetiva e na qualidade dos vínculos. Vale se sacrificar pela família, mas não vale se anular. Não existem metas de perfeição, mas uma disposição de fazer o melhor possível com aquilo que se tem.

“Hoje eu tenho mais ou menos a mesma idade que minha avó tinha ao fazer aquele retrato que tanto me inspirou. Os meus pais tão doentes, então a gente se mudou pra casa deles e eles desocuparam o fundo, que antes era alugado, pra eles ficarem lá. Quem fica com eles é a Gabi, que é filha da Tati, não minha. Ela tem muita paciência com eles, é um talento dela. Na casa da frente tem nós duas, mais a Brenda, filha dela. A minha neta, a Ingrid, tá vivendo aqui com seu bebê e o pai dele. Aí a amiga dela perdeu os pais por conta da Covid, e veio pra cá também. 

A gente tem 2 gatos e três cachorros, nas duas casas. Fico imaginando um retrato de família com a nossa família. Fico imaginando, sabe, minha avó, que já é falecida, vendo um retrato desses. Como ela interpretaria? Será que isso, pra ela, seria uma família? Porque pra mim é, sim, uma família.”

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