A TRAGÉDIA DE SUZANO E O DESAFIO DA CONVIVÊNCIA SOCIAL
A TRAGÉDIA DE SUZANO E O DESAFIO DA CONVIVÊNCIA SOCIAL
Tragédias como a que ceifaram a vida de 10 pessoas em Suzano – SP nestes últimos dias costumam levar à comoção pública e ao afloramento das mais diferentes interpretações apressadas. Me interessa aqui refletir sobre os desafios de promover convivência social num momento histórico tão agressivo como o que vivemos e como este episódio tem tanto a nos ensinar.
O apontamento da responsabilidade pelo ocorrido tem relação com o culto às armas e o clima bélico da última campanha presidencial é apenas a ponta do iceberg do crescente arrivismo[2] destes tempos. Na medida em que a coletividade é equiparada à noção de perigo, a família como se fosse refúgio e o oportunismo como ética preponderante, estamos à beira do colapso da convivência social.
A apologia à competitividade em suas várias modalidades tem sido crescente e sequer é compreendida como ameaça ao amálgama social. O chamado “empreendedorismo” traz consigo a centralização da prosperidade individual, para além da ética e da solidariedade humana. Não se pode reduzir este fenômeno ao egoísmo, porque este é apenas um reflexo subjetivo. É preciso abordá-lo enquanto modelo de sociedade, onde cada qual deve focar suas energias no “sucesso, grana e fama”, como acusaria Belchior[3].
É crucial para o êxito da doutrina da prosperidade, adotada até mesmo por algumas igrejas, a existência de uma política de segurança pública extremante eficaz, em moldes nunca vistos. Além disto, seria indispensável admitirmos que os agentes superpoderosos desta, seriam criaturas inefáveis e altruístas, que empenhariam a própria vida pelo bem comum, ou melhor, por um mundo onde todos pensassem tão somente em si e nos seus. Qualquer ruptura a este pacto seria coibida com toda a força possível, aplicando-se a vingança como instrumento privilegiado para a intimidação de tolher as ameaças ao equilíbrio deste sistema.
O mundo, entretanto, é mais complexo do que isto. Além de ingênuo no encadeamento de seus elementos, este raciocínio parte do maniqueísmo, pelo qual acredita-se que há pessoas cuja índole é má, contra as demais que seriam as “boas”, na qual certamente se enquadrariam seus defensores. A miríade de interesses que compõe a sociedade vai além da perspectiva de cada indivíduo. Há agrupamentos de interesses que se dão a partir da localização no processo produtivo (classes sociais), origem étnica, gênero, nacionalidade, ad infinitum. O choque não é entre bons e maus, mas entre múltiplos interesses e isto não cabe na lógica simplista do cada-um-contra-todos. Há até nomes adotados por seus defensores. Os jovens algozes de Suzano se identificavam como defensores da ideologia “ancap” ou anarcocapitalismo, por exemplo. Há outros subgrupos no mesmo sentido, mas pouco importa a bandeira que erguem. Há em comum o anseio de alpinismo social sem importar com as implicações na vida dos demais.
Mas afinal de contas, o que a promoção da convivência social, que é o objetivo central da política de assistência social? Simplesmente tudo. Não há outra área do conhecimento ou política pública mais entranhada com este debate. É claro que a filosofia, a sociologia, a ciência política, a psicologia e a história, é que dão base à questão, mas o ponto de síntese e proposição se dá na forma de uma política pública que, por um lado, acolha os mais vulnerabilizados por nosso modo de vida social e, ao mesmo tempo, promova o ambiente de convivência social que interdite a vigência do arrivismo, nas suas mais variadas formas de violência, seja física ou simbólica. Aqui se enquadram o racismo, o machismo, a homo e transfobia, o capacitismo (discriminação de pessoas com deficiência), entre outras formas de subalternização social.
O ataque frontal a este tipo de situação, na forma de denúncia e indignação pelo ocorrido, pode ser importante, mas não decisivo. Considero extremamente mais produtivo trabalharmos pelo longo prazo, plantando as sementes de uma inteligibilidade humanamente solidária. A valorização dos afetos, da história local, da ludicidade, da arte e da diversidade não são contraditórios a discussão de um projeto de sociedade de maneira mais amplo, pensando a reorganização do processo produtivo, os papéis das instituições públicas e esferas de governo. A dialética entre estes universos é que possibilita a construção de um novo horizonte para a vida humana onde a alteridade seja o parâmetro ético-político-estético da vida em sociedade.
A territorialidade tão bem descrita por Milton Santos[4] deve ser nosso foco de trabalho para a abordagem da formação da identidade cidadã. Sem se perder no localismo, mas relacionando-o às mais altas esferas da geopolítica, dará a complexidade necessária o resgate do espaço de convivência. Promover convivência social ultrapassa em muito o desenvolvimento de atividades de interação para alcançar a racionalidade que nos torna seres sociais, no mais amplo sentido da expressão. Este é o desafio de uma política pública, mas exige o compromisso de várias gerações para que não precisemos mais apenas chorar pelas mortes nas escolas, nas periferias e em tantos outros espaços da vida social.
[1] Psicólogo (CRP12/765), Mestre em Sociologia Política, Consultor e conteudista do portal Social Soluções www.socialsolucoes.com
[2] Arrivismo, também denominado alpinismo social, se caracteriza pela obsessão com em “subir na vida” a qualquer custo, foi sintetizada numa antiga propaganda do cigarro Vila Rica (1976) protagonizada pelo jogador da Seleção Brasileira Gérson: “Eu gosto de levar vantagem em tudo, certo?”
[3] Belchior, Música: “Dandy”, Álbum: Melodrama, 1987.
[4] SANTOS, Milton. O espaço do cidadão (1987), O retorno do Território (1994), Território e Dinheiro (1999), Por uma Outra Globalização (2000) e outros.