TERCEIRO SETOR, UM RÓTULO COM VALIDADE VENCIDA

por: Prof. Ms. Carlos Ferrari e Dr. José Francisco Manssur

Quem gosta de MPB e já passou dos quarenta com certeza se lembra do clube da esquina. 

Foram milhões de amores, encontros e sorrisos embalados por vozes e melodias, de jeito e sotaque único, temperadas por uma dose de “mineirice” suficiente para fazer do movimento um exemplo de identidade que resiste às intemperes do tempo. Falar do clube da esquina, significa manifestar em voz alta a constatação verbalizada de uma sinergia, promovida pela forte identidade que conectou artistas como beto Guedes, Vagner Tiso, Toninho Horta, Lô Borges, Milton Nascimento dentre outros.

A exemplo da turma de BH, podemos citar uma série de outros exemplos que entraram para história com uma marca consistente o bastante para fazer lembrar da qualidade das partes, na mesma proporção em que se valoriza a importância do todo. É impossível pensar na narizinho sem lembrar do sítio do Pica-Pau Amarelo, no Dream Time sem falar de Magic Johnson, nas indústrias de SP sem tratar de FIESP. 

Bauman em seu livro Comunidade, A Busca Por Segurança No Mundo Atual, afirmou que a construção da identidade é um processo sem fim, sempre passível de experimentação e mudanças. Assim, aquela logo ou marca que outrora nos representava e até dava orgulho, nem sempre terá a condição de seguir conosco ao longo da vida.

Tomar parte de um grupo, Empresa, Clube, Associação ou qualquer outra espécie de coletivo, identificado por nomenclatura e outros símbolos, com potência suficiente para gerar reconhecimento e, mais do que isso, agregar valor, é em geral objeto de desejo de pessoas e organizações. Partindo desta linha, chegamos ao tema que lhes propomos, partindo da constatação que se apresentar como entidades do terceiro setor, tem sido, ao longo dos últimos trinta anos, uma espécie de posicionamento identitário que caracterizou boa parte das Organizações da Sociedade Civil. 

Isto posto, se percebe que a consolidação de políticas públicas, somada ao acúmulo de expertise dessas organizações em múltiplas áreas do conhecimento, apontam para uma insuficiência desse recorte para traduzir o que de fato são essas entidades. Vale lembrar, que a expressão de origem estadunidense, remete a um posicionamento econômico de personalidades jurídicas sem fins econômicos. Sendo organizações estatais do primeiro setor, empresas de mercado do segundo, toda a turma “.org” foi se acomodando em uma espécie de terceiro pote.

 Neste pequeno ensaio lhes convidamos a refletir sobre a necessidade de superar tal generalização, para dar lugar a outras possibilidades bem mais alinhadas com o tempo presente. Podemos falar das milhares de entidades de Assistência Social, ou de outras tantas de Saúde, Educação, Esporte, Cultura, enfim, entidades protagonistas na materialização de políticas setoriais.

Outra perspectiva com alta capacidade agregadora é a condição de Organização da Sociedade Civil, condição legal que tem como Marco Regulatório a Lei Federal 13.019/2014. Também poderíamos falar de entidades filantrópicas, OSCIPS, ou tantas outras identificações balizadas por certificações ou outras modalidades de acreditação privada ou governamental

Sabemos, porém, que ainda são muitas as redes e associações que trazem na centralidade de suas marcas a proposta de terceiro Setor, a exemplo de tantas entidades de pessoas com deficiência que, por décadas, levaram adiante em suas nomenclaturas, terminologias já superadas e até combatidas pelo próprio segmento.

Cabe destacar que ao propor a superação da ideia de terceiro setor, em absoluto pretendemos dar qualquer conotação negativa àquelas entidades que ainda se apresentam com essa roupagem. Diferente disto, esta provocação tem por principal objetivo, convidar gestores e trabalhadores de centenas de milhares de organizações da sociedade civil a consolidarem coletivamente novos referenciais de pertencimento, com condições mais efetivas para assegurar visibilidade a seus fazeres e bandeiras.

O rótulo de terceiro setor, apresenta-se como a antítese destas possibilidades, pois traz consigo uma superficialidade típica de classificações desgastadas pelo uso e pela má concepção de origem, neste caso por vezes agravada ao se contaminar pela pseudo bondade generalizada que busca abarcar todos os profissionais e organizações deste campo social.

Organizações de pessoas com deficiência, Clubes paraolímpicos e entidades de defesa de direitos são alguns bons exemplos de novas possibilidades de tipologias orientadoras de identidades, sustentadas por um senso de pertencimento coletivo, com adjetivações que comunicam melhor suas intencionalidades e realidades, se comparadas com o discurso reducionista de posicionamento em determinado setor.

Superar a lógica do “balaio comum” não é apenas uma decisão retórica, trata-se de um posicionamento político que abre caminhos ainda não explorados, porém extremamente necessários para o enfrentamento de generalizações que buscam criminalizar e nivelar por baixo todos os fazeres e saberes de organizações da sociedade civil.

Mas como escolher a identidade mais adequada? Sempre que levamos estas provocações para debates e formações mais complexas, essa pergunta vem à tona, visto que no país ainda existem uma infinidade de organizações caracterizadas por múltiplos fazeres. Tais entidades, por vezes, têm suas práticas Orientadas pela crença de que a cima de qualquer aprimoramento técnico na gestão ou na operação, devem estar valores sustentados pela caridade, amor ao próximo e o voluntarismo. Outras tantas ainda não tem valores bem definidos e acabam orientando suas práticas por meio de uma espécie de conjunção resultante da média de distintas percepções de mundo de seus gestores e atores políticos.

Com um pouco de conversa, fica fácil mostrar para quem pergunta, o quanto é importante encontrar coletivamente argumentos que fundamentem a pactuação de uma resposta consistente. Afirmar “Somos do Terceiro Setor “por vezes é uma fuga inconsciente que visa protelar a decisão de se buscar por meio da reflexão compartilhada, a resposta acerca do que realmente é a entidade.

A definição em geral não é simples, visto que toda organização é feita de múltiplas forças, e sobrevive ao longo da história, graças a conciliação de distintos interesses e visões. A consciência de que se faz necessário respeitar o tempo histórico de cada entidade, é fundamental para que não sejam geradas polêmicas infrutíferas. Como já mostramos anteriormente existem alternativas identitárias, que não demandam uma definição pública do que se faz, porém desafiam a se pensar com maior profundidade de onde se faz.

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