Feriadão e Leitura

Ainda com os olhos fechado tateou a cabeceira da cama e desligou o despertador. Resolveu que irei desligar mesmo. Naquela manhã abandonaria a tática da soneca. Mudou de posição e suspirou sonolenta. Pela primeira vez na vida iria acordar a hora que quisesse sem peso na consciência.

Bateu o ponto às 10h45min da manhã sob olhares incrédulos.  De all star e sem maquiagem, ainda cantarolando À PALO SECO caminhou com seus passos firmes até sua sala, cumprimentou seus colegas de trabalho e sentou-se a mesa disposta a bisbilhotar os sites de notícia. Inspirou o clima de perplexidade junto com a atmosfera de que tudo que é sólido se desmancha no ar. Aquilo lhe encheu os pulmões e trouxe uma sensação de satisfação inimaginável. E esperou…

Segundos depois a secretária do Todo Poderoso apareceu diante dela afobada. Mas ,naquela manhã, o tempo para ela estava em modo slow motion, por isso os segundos foram vivenciados como longos e prazerosos minutos. E ao observar o desespero da secretária sentia vontade de gargalhar, mas conteve-se. Ouviu atentamente o pedido agoniado de comparecer com urgência na reunião marcada para aquele dia às 8 horas, com sua presença e participação determinantes.

Fechou os olhos por segundos sem tentar esconder o prazer que sentia ao ver como seu chefe e sua cambada a olharam depois de 2h48 minutos de atraso. Sentou a mesa com os cotovelos apoiados nela e as mãos cruzadas segurando o queixo. Fez questão de olhar no olho de cada um ali a censurar e julgar. Entrou num dilema mental tentando decidir qual sensação queria desfrutar mais intensamente: indiferença pelo grupo sentado em torno dela que se auto-intitularam a vanguarda do mundo; superioridade, pois a mesquinharia era tamanha não permitindo a mesquinhez desvelar seu egocentrismo; ou deleite, porque queria ver com seus próprios olhos a superioridade enterrá-los. Sorriu com malícia ao quinto, sentado da esquerda para direita, era ele quem mais a subjugava. Voltou sua atenção ao chefe e sorriu, sorriu com seu riso mais debochado e discreto, e deixou seu olhar falar. A reunião recomeça. E ouviu…

 Ela deveria conduzir aquele encontro. Deveria apresentar ideias, táticas, estratégias, linhas de ação, planos, proferir a ideologia, conduzir, liderar. Mas não. Aguardou ansiosamente ser questionada, quando foi, inclinou orgasticamente a cabeça para trás com um sorriso mostrando os dentes escorregando ainda mais o corpo na cadeira. Constatou que seu corpo estava confortavelmente esparramado na cadeira, com todos os olhares compenetrados nela e seu chefe segurando a respiração ao esperar sua resposta. O silêncio na sala era avassalador. E falou…

Não. Naquela manhã não esperassem nada dela, assim como não esperam nada de ser humano algum. Não. Naquela manhã ela seria mais um, seria da massa. Não. Naquela manhã a ideia não seria criativa, não seria o que esperavam dela, simplesmente foi inovadora: seria senso comum. Não. Naquela manhã, quis surpreender, a tática, o plano de ação a estratégia seria deixar a história seguir seu curso, aconselhou com olhos arregalados e voz de sabedoria que a roda da história se encarregaria de tudo. Não. Naquela manhã o plano é não conduzir tão ferrenhamente, é liderar sorrateiramente, é induzir as pessoas, persuadi-las a fazer o que ela achar melhor, e não o que eles querem de fato. E observou…

O silêncio destruidor tomou conta da sala. A mesa balançava com o chacoalhar das pernas ao expressar a tensão muda. Estava entorpecida com o que via e sentia. Respirou fundo e proferiu…

Um espectro ronda a humanidade… a história de todas as sociedades que existiram até nossos dias tem sido a história do salve-se quem puder. Quem pode se salvou e com unhas e dentes manterá o que puder. Degolem todos, foi o exigido pelo grupo ali presente. Com sua tranqüilidade mórbida falou… Não. Naquela manhã não faria absolutamente nada a não ser executar ipsis litteris o que fosse decidido pelos homens e mulheres. E suspirou perseverante…

A Revolução foi embora naquele momento satisfeita consigo mesma. Ela havia começado naquela manhã quando ignorou o despertador. Com os fones no ouvido cantou sem pudor que assim como Belchior aquele amigo que embarcou com ela cheio de esperança e fé já se mandou Oh! Oh! Oh!

Decidiu não pensar em nada. Antes de esvaziar a mente, pensou como seu velho: se o homem é formado pelas circunstâncias será necessário formar as circunstâncias humanamente. E não pensou…

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