INCLUSÃO DISRUPTIVA E ACESSIBILIDADE LÍQUIDA: DESAFIOS E OPORTUNIDADES PARA PESSOAS com deficiência E SEUS MOVIMENTOS DE LUTA NA ERA DIGITAL

por: Prof. Ms. Carlos Ferrari

INCLUSÃO DISRUPTIVA E ACESSIBILIDADE LÍQUIDA: DESAFIOS E OPORTUNIDADES PARA PESSOAS com deficiência E SEUS MOVIMENTOS DE LUTA NA ERA DIGITAL

A primeira vez que propus esses conceitos publicamente foi no Norte do Brasil, em Breves, cidade Amazônica localizada há doze horas de barco da capital Belém. Fui provocado a tratar das possibilidades e desafios enfrentados por trabalhadores sociais, ao buscar desenvolver melhores níveis de convivência e autonomia para populações ribeirinhas, em tempos de alta conectividade.

Apresentei as ideias despretensiosamente, apenas buscando provocar naqueles trabalhadores um olhar diferente para organizar seus fazeres e saberes diante de tantas transformações tecnológicas, econômicas, ambientais e sociais.

Posteriormente, retomei essa proposta em um prefácio elaborado para uma publicação da União Latino Americana de Cegos – ULAC. O livro organizado a partir de ensaios selecionados dentre vários elaborados por pessoas cegas de toda América Latina, foi uma iniciativa inédita na região. Neste contexto, consciente da responsabilidade ao capitanear essa ação inovadora a frente da Secretaria de Tecnologia e Acesso a Informação da organização, decidi trazer para aquela publicação uma contribuição propositiva orientada por uma abordagem com forte impacto prático para nossas lutas e articulações políticas.

São muitos os pensadores e curiosos, dispostos a escrever, analisar e até praticar exercícios ousados de futurologia para tentar encontrar respostas que dialoguem com os impactos das novas tecnologias nas relações humanas. Contudo, ainda estamos longe de elementos teóricos e empíricos que nos apontem certezas diante do fenômeno, ao qual recorro a uma analogia para descrever como uma “pororoca”, produzida pelas águas” da inclusão e do digital.

Nada melhor do que recorrer a esse termo indígena com sonoridade tão melódica e potente, traduzido como estrondo, utilizado para adjetivar o encontrar de águas, beleza rara que só se pode ver e ouvir quando do encontro entre o rio e o mar, ou mesmo entre dois rios, para tratar de tamanho desafio civilizatório.

Para Tom Chatfield, autor do consagrado livro: “Como Viver na Era Digital” em termos intelectuais, sociais e legislativos, estamos anos, se não décadas, atrasados em relação às questões do presente. Em termos de gerações, a divisão entre os “nativos” que nasceram em meio à era digital e aqueles que nasceram antes dela pode parecer um abismo através do qual se torna difícil articular determinadas conclusões e valores compartilhados.

Suas reflexões tratam do viver em tempos de alta conectividade, porém, poderiam com algumas pequenas adaptações serem utilizadas para problematizar os desafios e conquistas decorrentes de nossas lutas por mais inclusão.

Assim, podemos afirmar que o tempo em que vivemos, materializa-se para as pessoas com deficiência e seus movimentos, demandando e oportunizando um conjunto de rupturas até bem pouco tempo, inconcebíveis mesmo em nossos sonhos mais loucos. Antônio Carlos Gomes da Costa, grande estudioso e defensor dos Direitos da Criança e do Adolescente no Brasil, cunhou a ideia de pioneiros de paradigma.  Imagino que se hoje ainda estivesse vivo, defenderia com ainda mais vigor sua proposta, visto que a possibilidade de nos apresentar individual ou coletivamente para o exercício desta condição, é real e necessária para alcançarmos patamares de inclusão do tamanho de nossas urgências historicamente amplificadas.

Antes de seguir, é importante trazer para conversa o que de fato entendo por inclusão. 

Proponho a definição a partir de muitas leituras, debates, sem deixar de considerar obviamente meu lugar de fala. Trata-se de uma via de mão-dupla, pavimentada por valores como equidade, respeito, cidadania, dignidade humana e justiça social. Assim configura-se como um pilar estruturante de pequenos grupos ou mesmo de grandes sociedades com alto nível de complexidade.

Inspirados pela “pororoca” produzida entre a inclusão e o digital, é fundamental ousar e nos apresentar como pioneiros de paradigmas.  Investidos (as) da autoridade de quem testemunhou e vive o ressignificar da deficiência e das barreiras geradoras de exclusão

Ao dar um passo desta natureza, é importante trazer para a conversa um elemento central para a discussão. Trata-se da decisão de infelizmente ainda alguns poucos grandes players do mercado em conceber seus produtos e serviços totalmente orientados pela ideia de desenho universal. Exemplo disso é gigante Apple, que já na década passada apresentou equipamentos com telas touchs concebidos com recursos de acessibilidade. A medida   foi decisiva para que pessoas cegas não ficassem para traz, visto que os smartphones normalizados pelo cotidiano e pela paixão de bilhões de pessoas, em maior ou menor medida têm assegurado o acesso a direitos talvez nunca alcançados em toda a história de luta deste segmento. 

A consciência desta janela de oportunidades, nos convoca a empunhar novas bandeiras e refletir acerca de velhos discursos.

Para um upgrade em nossas lutas, lhes afirmo que será fundamental propor um novo jeito de incluir. Por isso proponho o conceito de Inclusão Disruptiva, ou seja, uma via de mão dupla onde verdadeiramente mais pessoas possam ir e vir. Trata-se de um esforço coletivo para desconstruir criativamente, modelos de inclusão ultrapassados, seja pelo alto custo, infelizmente por vezes concebido para captar volumosos recursos financeiros estatais, seja por conta da valorização de estratégias que se opõem ao conceito de desenho universal.

Se equipamentos como a linha Braille, tão celebrada e desejada por milhões de cegos apresenta-se como um objeto de ficção para a grande maioria destas pessoas do mundo, não pode ser considerada como uma real ferramenta de inclusão. Lutar por uma inclusão disruptiva, significa lutar por soluções de mercado, com capacidade para desconstruir o constrangimento gerado por equipamentos inclusivos com custos equivalentes a um ano de salário de famílias completas.

A luta por uma inclusão disruptiva, ainda precisa considerar os impactos decorrentes do que tenho denominado Acessibilidade Liquida. A atualização de um site ou aplicativo, pode gerar danos ou ganhos imediatos para milhões de pessoas com deficiência ao redor do mundo. A efemeridade das soluções digitais precisa ser considerada como um dos problemas centrais a serem debatidos por ativistas, gestores públicos e pesquisadores, assim como as possibilidades de reversão imediata de barreiras também precisam estar nos radares de todos que lutam por inclusão.

Nos próximos anos o mundo gerará postos de trabalho/profissões, que talvez se quer seja possível atualmente imaginar. Trabalhar preventivamente para vencer barreiras que poderão surgir, ou para propor fazeres que independem de limitações nas estruturas do corpo, podem ser algumas das tantas possibilidades inovadoras de se promover inclusão disruptiva.

O desrespeito e a falta de visão mercadológica de designers de embalagens, têm sido superados por aplicativos como Tap Tap See e Seeing AI. Tais soluções permitem por exemplo, que cegos possam usar a câmera do celular para distinguir uma lata de suco ou cerveja.

A comunicação entre surdos e ouvintes, infelizmente pouco presente nas preocupações que orientam a formulação de políticas públicas, tem ganhado uma nova perspectiva, por conta de soluções como o app Hand Talk, que funciona como uma espécie de tradutor instantâneo para a língua de sinais e vários idiomas.

Colocado estes dois exemplos, chamo a atenção para que possamos pensar a inclusão disruptiva para além das TICS, Tecnologias da Informação e Comunicação.  O Mundo Líquido que nos foi apresentado por Balman, requer estratégias criativas para o alcance de incidência política, novos posicionamentos diante das violações de direitos recorrentes e principalmente o ressignificar de consciência diante do que por décadas nos acostumamos a reconhecer como inclusão.

Ao pensar em inclusão disruptiva, vale trazer como exemplo, um centro de reabilitação, historicamente reconhecido como sendo de referência. Ao reunirem-se para tratar das demandas e possibilidades do tempo presente, com certeza seus gestores precisarão planejar um novo ciclo, estabelecendo prioridades ao analisar as barreiras e oportunidades existentes em ambientes físicos e virtuais.

Captchas, botões não etiquetados, soluções de descrição de imagens, e protocolos de acessibilidade online, são temas que até outro dia passavam longe das priorizações elencadas em uma reunião desta natureza. Contudo, tratam-se de temas essenciais, pois acabam gerando barreiras que afetam a autonomia, a convivência, em fim que excluem pessoas.

Em um encontro fui questionado acerca de minhas provocações relacionadas a ideia de Acessibilidade Líquida. Um jovem que acompanhava a apresentação perguntou se tal abordagem, não relativizava o princípio da acessibilidade enquanto direito conquistado.

Ao responder estabeleci como argumento central de minha reflexão a constatação de que tanto barreiras, como tecnologias assistivas nascem e desaparecem com uma velocidade jamais pensada. Por conta disso, soluções e novos problemas surgem em profusão, demandando um tempo de resposta que a maior parte de pessoas e movimentos ainda não se prepararam para atender.

Ao refletir sobre os desafios gerados pelo mundo do trabalho, o historiador Yuval Noah Harari em seu livro: “21 Lições para o Século XXI”, nos alerta afirmando que “Mudanças são sempre estressantes, e o mundo frenético do início do século XXI gerou uma epidemia global de estresse”. Ele segue em suas reflexões trazendo o seguinte questionamento: “Será que as pessoas serão capazes de lidar com a volatilidade do mercado de trabalho e das carreiras individuais? Provavelmente vamos precisar de técnicas de redução de estresse ainda mais eficazes — desde medicamentos, passando por psicoterapia e meditação — Para evitar que a mente do Sapiens entre em colapso.

Retornando para nossos desafios, é possível identificar um stress coletivo, gerado pela luta por uma inclusão de baixo resultado, em alguns casos com a situação agravada por um   longo tempo de retorno. Ao fazer tal afirmação, não pretendo culpabilizar a vítima, ou seja, nós lideranças de movimentos e pessoas com deficiência. Ao contrário disso, quero alertar para a urgência de olharmos para nossa caminhada por meio de outras lentes.

Não tenho dúvidas em afirmar que por meio da geração de estratégias de inclusão disruptiva será possível vencer os desafios da acessibilidade líquida.

Para concluir, é importante reafirmar que ao trazer esses novos conceitos para o centro das conversas, não se pode perder de vista os desafios econômicos. Voltando ao livro de Harari, o autor afirma que, “toda rotina é um convite à ruptura, e toda hierarquia um convite à Revolução”.

Só teremos inclusão disruptiva, baixando custos de tecnologias assistivas, concebendo produtos e serviços na perspectiva do desenho universal, investindo na “reabilitação” da sociedade e não apenas de pessoas com deficiência.

Em sendo assim, os distintos movimentos de pessoas com deficiência espalhados por todo o planeta, precisam fazer uma jornada global, para que se possa pactuar rupturas com força transformadora  suficiente para abrir  portas até então fechadas, inaugurando rotinas mais cidadãs, por meio de uma revolução sustentada pelo diálogo e pela capacidade propositiva de desenhar estruturas de participação social, alicerçadas pelo protagonismo de nossa gente.

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