CONVIVÊNCIA NO UBER – Parte 1
Pouco mais de vinte anos DI (depois da internet) surgiu nas ruas das cidades brasileiras o efeito do novo jeito de operar a vida no quesito mobilidade urbana, uma “coisa” chamada Uber.
Dos mesmos grotões da chamada inteligência artificial, esse modelo de transporte e negócio se alastrou pelo dia a dia do país trazendo conflitos, comodidades e alternativas de locomoção com uma boa dose de novidades: a popularização do uso de mais um aplicativo (app), espécie de guia darf das formalidades bancárias dos anos 80/90 ou papel almaço da mesma época, objetos ou recursos que usávamos para viabilizar a vida em diversos campos de interesse do indivíduo.
Longe de mim argumentar ou entender os apps e seu funcionamento tecnológico, digital, piramidal. Sei que funcionam e expressam uma vida inteligente que chega sem grandes anúncios e domina nosso tempo com a aura do que sempre existiu. Nós é que não percebíamos sua larga necessidade em nossas vidas.
Depois do controle remoto, do miojo e do jeans rasgado, o(a) Uber ocupou o espaço nas nossas vidas, reinventando pelo mais baixo e preestabelecido custo e a promessa de atendimento superior aos velhos, viciados e pouco funcionais taxis, nossas viagens urbanas. Os sempre saturados transportes públicos e aquele tic-tac dos taxímetros, também lembrados em preguiçosas filas nos locais públicos, ou sumidos quando mais o demandavam, deram lugar para telefone acoplado no painel e as benesses da tecnologia.
Do aceno característico nas ruas, aos chiados dos radiotáxis e seus QRL/QSL, não temos saudade. Nem mesmo da postura, muitas vezes bisbilhoteira de alguns condutores. Agora, com o(a) uber, o conceito mudou. Com um aumento de confiabilidade pelo rastreamento e GPS que indicam caminho mais conveniente, o uso desse recurso redesenha e ajuda formas de chegar e desentupir (ou não?) as via das principais das cidades.
Para além dessas peculiaridades e outras tantas, experimenta-se no ambiente renovado da viagem encomendada, um jeito próprio e em experimentação de convivência. Essa constatação engloba a observação de que o(a) Uber é “psicanálise”, lugar onde se fala, alguém te ouve e você conta da vida, narra histórias falaciosas e adaptados a seu favor e desabafo. Às vezes quase resolve.
A circunstância ajuda a emergir reminiscências desse novo “motorista de praça” que ainda tem ou teve recentemente outra ocupação e descobre a oportunidade de trocar ideia com seu “convidado”, como alguns já se identificaram para mim. O novo status do passageiro.
A convivência na viagem é tanto experimental quanto, muitas vezes, imponderável. Em tempos de eleições é bom não arriscar. Há probabilidade razoável de uma discrepância nas posições, que é melhor recuar ou nem começar. Quanto ao gosto musical, a maioria dos motoristas submete ao contratante o gosto, ou simplesmente, se solicitado, a desligar ou trocar a frequência da rádio ou gênero musical.
Como usuário recorrente do serviço, em cidades diversas, horários e itinerários imprevisíveis, já vivi ocasiões de muita sinergia e outras, felizmente não tantas, com baixa qualidade de interação.
Alguns elementos são indispensáveis para considerar essas observações. O primeiro deles é que a chance de você chamar duas vezes o mesmo motorista é quase nula, nas grandes cidades. Nunca me aconteceu. Depois tem as categorizações do próprio aplicativo que impulsionam determinados perfis pela compatibilidade das suas pontuações avaliativas. Terceiro, e aí a coisa degringola um pouco, dependendo da cidade, parece que as duas primeiras não vão rolar nunca. A coisa não funciona mesmo.
Mesmo assim é saudável lembrar dos inúmeros ex-professores, das viúvas ou abandonadas que assumem a labuta sem medo e com determinação, os engenheiros e até ex-empresários em vias de trocar de ramo.
Já circulei com o Uberson, Airton Senna, Risovaldo, estrangeiros sem nenhuma comunicação e até com alguém com meu próprio, incomum e improvável nome. Nas mulheres, senhoras de oitenta e moças de 19 anos. Um universo que se confirma, afirma e vai se ajustando na recentíssima maneira de conviver por uma viagem na cidade.
Relato alguns trajetos.
Cena 1: o condutor é um profissional de área especifica que completa orçamento com o trabalho em horas vagas. O carro é dele. Nesse caso, a convivência se torna amena. Há troca e curiosidades a ser encaminhadas. Muitas vezes torna-se a viagem uma oportunidade de desabafo, de afloramento de experiências ou histórias que surgem de forma randômica no ambiente, produzindo desde gargalhadas afins, quanto comoção. Ainda que produza essas emoções, a viagem, ainda mais sendo razoavelmente longa, é bem agradável.
Cena 2: O condutor é aposentado ou algo assim que lhe garante outra renda e o(a) Uber é só um pretexto para sair de casa ou movimentar a vida. Aí a coisa é plana, leve, solta. Ele te fará confidências, projetará suas reminiscências e resolverá o mundo com suas soluções acumuladas pela vida e, você saberá, vai extrapolar a realidade para contar projeções ou desejos infames que nunca se realizarão ou aconteceram, mas a sublimação do momento resolve tudo. É bem divertido.
Cena 3: O carro é alugado ou de terceiros e o condutor batalha diariamente pelas metas de ganhos e manutenção, devido à necessidade gerada por um desemprego. A convivência tem outro tom, quase uma adaptação. Se o sujeito ao volante já teve uma outra oportunidade e não conseguiu se firmar e recorre ao(à) Uber, considere que o assunto, se houver, será pouco convergente e até com certa aspereza. Se você não estiver disposto a contemporizar, considere o fone de ouvido ou uma ligação de trabalho e torça para a viagem acabar logo. Se você quiser contribuir com a situação do condutor, vá em frente, ele precisa ser ouvido e quer concordâncias.
Cena 4: O sujeito estava em casa e foi forçado a optar pela atividade sob pena das reclamações de outrem ou a penalidade dos boletos em tempestade. Essa é a pior viagem. A amargura não tem fim e se manifesta por gestos e caras de poucos amigos. Recolha-se. Não açode o problema e perceba o drama. Esse indivíduo está no lugar errado e, agora, com a nota de avaliação torça para que reveja seu projeto de vida emergencial.
No próximo texto, algumas considerações sobre os passageiros.