CONVIVÊNCIA NO UBER – PARTE 2

por: Aurimar Pacheco Ferreira

No filme americano Taxi Driver (1976), Martin Scorsese retrata o protagonista do título, um sobrevivente do Vietnã e agente de todos os males da humanidade que habita e trabalha em Nova York, EUA, preferencialmente à noite. Além de consagrar De Niro e lançar Jodie Foster, adolescente, o filme demarca uma profissão peculiar até então, e invisível de tão burocrática: o motorista de taxi.

Para além da película e dentro de nossos mais candentes devaneios, esse personagem insinua uma presença contínua e permanente nos centros urbanos. Alguém cuja existência nos escapa como herói, mas não nos faltará na descrição estética bem feita de uma grande cidade.

O século XXI e sua sina de inventar e estremecer nos trouxe o Uber, uma releitura de Travis Bickle, aquele motorista no cinema em 76, e atualizou seu cotidiano e pesadelos. Além de precisar dos rendimentos pelo que o trabalho lhe impõe, a personagem atual progride, seria algo a mais e representaria um “gentleman”, espécie de Hoke Colburnem Conduzindo miss Daisy (1989), o condutor resiliente e indiferente aos humores hostis do passageiro que acabará por conquistar, um agente do milênio 3, cuja habilidade de conduzir essa máquina anacrônica, o automóvel, ainda lhe atribui a característica de sujeito lhano, agradável e quase infalível.

Esse cidadão, anunciado pela nova modalidade de prestação de serviços, seria a peça principal da novidade. Ainda que o carro seja zero e cheiroso e a tarifa mais baixa, o piloto tem que ser o fator decisivo e acolhedor. Seu perfil, fotografia e outras qualidades expostas no aplicativo, se o tornam experimentalmente dócil, é uma garantia do nosso mais recente governador digital, o algoritmo, de que o Uber é conveniente, seguro, sob controle, moderno, barato e mais humano impossível.

Nas minhas caminhadas pelo país tenho convivido com Ubers, aqui mais um neologismo para motoristas de aplicativos, que me instigaram a pensar na rotina desse (a) profissional de maneira simplória e subjetiva. Como é para eles conviver com pessoas (passageiros) que estão, sem noção completa disso, ajudando a reinventar a mobilidade urbana no mundo.?

Por isso vale muito olhar por alguns minutos a condição dessa invenção. O taxi tradicional, aquele que você utilizava geralmente apenas quando tinha pressa, (“…Vou de taxi, cê sabe, tava morrendo de saudade…”) com o Uber perdeu seu sentido, sendo este agora, pelas conveniências gerais, uma alternativa mais usual que lhe faz competir com outros meios e modos de deslocamento.

Sendo assim passageiros recorrentes se avolumam a seu modo e apresentam as faces de uma maneira de conviver em tão curto espaço físico, o carro, e de tempo, a viagem. Aquele ‘interior do veículo’ é um locus de surpresas, pequenos incidentes, bizarrices e outros quetais, relatados pelos pilotos de Uber. Ainda que às vezes em cores fortes.

Há uma tendência nas conversas entre os homens ser mais comuns. Passageiro e motorista masculinos, pediria assunto quando a viagem é mais amena e relativamente longa. Até mesmo entre as motoristas mulheres e os passageiros masculinos conversa-se mais, segundo a lenda. Dizem algumas motoristas, que as mulheres são mais econômicas nos assuntos, certamente por segurança ou pela desintimidade e distanciamentos necessários. Há relatos até de soberba mais recorrente nesses casos também, sem nenhuma comprovação cientifica.

O fato é que o passageiro dá o tom da viagem. É o cliente, o contratante, quem conhece o endereço de origem e em tese, tem suas razões de chegar onde pretende ir. Por opção atual, as novas condições que se apresentam nas tutoriais, esse passageiro tem a prerrogativa de escolher se quer conversar ou não durante o trajeto. Portanto cresce a provocação do velho e suspeito de sempre, o mercado, de alvoroçar as relações, colocando nas mãos de quem paga, supostamente quem tem mais poder econômico naquele microcosmo, o direito de parecer mais importante do que quem dirige, em mais uma malfadada divisão social do trabalho.

Considerando o sentido de propriedade privada (o carro pertence ao motorista ou pelo menos à sua responsabilidade) as coisas podem azedar nessa convivência enredada, abrindo fenda no relacionamento se as partes caírem nessas ciladas. Por isso, a bem da verdade, o tino de prestador de serviço do guiante precisa ser fera, altiva e bem discernida. Tá fora de questão se ele dirige somente o carro. Ele direciona também a relação, o dedo de prosa que coroa uma boa experiência em um Uber.

Inclusive o fator silêncio.

Segundo relatos recentes dos motoristas e como não poderia ser diferente, há passageiros e passageiros… Desses segundos não há como esquecer os que chamam o carro, mas avisam que ainda tomarão um bom banho ou terminarão aquela refeição antes de sair.

Tem a história do rapaz que entrou de terno gravata, na porta do edifício empresarial e, após pedir licença para se trocar no banco traseiro, no destino saiu com turbante, roupas indianas e sotaque idiche. Como não lembrar do passageiro que queria vender um tatu para o motorista, em cidade do centro oeste brasileiro? E o engenheiro da obra em avenida na grande São Paulo, que contou ter encontrado um navio enterrado a mais de dez metros de profundidade, enquanto tentava fincar um pilar do prédio em construção.

Sobre as reminiscências dos mais velhos, constam as epopeias sexuais e espertezas do mundo masculino sempre no limiar da bravata e um final feliz impostor. E os desabafos, esses muito, muito mesmo repetidos, dos sofrimentos passados, presentes e futuros, sejam das juntas, articulações e ossos humanos, sejam dos corações partidos ou daquela perda irreparável do familiar que se foi.

Uma professora universitária aposentada no Recife, nos falava em um maio de 2019 enquanto dirigia: estou colhendo histórias para talvez publicar uma coletânea. Já tenho mais de vinte situações pitorescas de passageiros esquisitos ou desesperados, afirmava ela.

Com 5.765 viagens realizadas, um motorista meia idade, relembrava: já quase fiz parto, consolei viúva, fui assaltado, expulsei bêbado e transportei a mais linda mulher que já vi na vida. Inesquecível, apesar de não ter trocado uma única palavra com ela. Tudo muito comum, se não fosse no Uber, uma suposta concessão de um proprietário de automóvel, para transportar alguém durante um período do dia livre.

Como se trata de conceito novo e talvez transitório, sei lá, fala-se de drone, estrovengas tecnológicas individuais aladas e até em teletransporte para os dias vindouros no deslocamento de pessoas. O Uber pode desaparecer em breve em mais uma profecia perpendicular do Bauman. Mas deixará sua marca de pioneiro em negar aquele taxismo horrendo das décadas anteriores e terá certamente reformulado ou nos colocado para pensar sobre esse fenômeno que é viajar junto sob as pressões do dia a dia, com uma pitada a mais de conforto.

Quanto aos motoristas, em meio as suas necessidades de sobrevivência, seguem com aquela impressão de que detém mais um poder que a tecnologia fantasiosamente lhes atribui, quando hoje, ao final de cada viagem, banaliza: o destino de fulano está à direita. O que não é pouco. E ele tem como recompensa imediata por isso, do mercado que lhe desenha, o valor em dinheiro, matematicamente justo no cartão de crédito e uma avaliação quantitativa que o credenciará para outras viagens com gente estranha. Nenhum sorriso lhe caberá nesse script, se seu desempenho for diferente desse combinado.

Ah, e eu como passageiro, sou nota 4,96.

Paara ler a primeira parte desta conversa, acesse: http://socialsolucoes.com/artigo/undefined/38/UBER1

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