Já repararam que tem muita gente por aí com vergonha de exercer a cidadania?
Pois é, ser cidadão significa em síntese, exercer com plenitude direitos e deveres reconhecidos como comuns para uma sociedade disposta a viver em harmonia.
Para tanto, nós seres humanos trabalhamos, estudamos, pagamos impostos, amamos, discutimos, pensamos diferente e nos esforçamos para construir consensos, ou seja, ideias comuns que nos estimulem a seguir juntos.
Aí nos vemos diante de uma pandemia, um mal maior que ameaça a vida de milhões de nossa espécie e, pior, coloca em xeque regras básicas de convivência que demoramos milhares de anos para aprimorar. Neste contexto, a ciência, responsável por boa parte de nossas tomadas de decisões racionais, aponta para a necessidade de nos recolhermos, fazermos do isolamento social uma espécie de arma global para nos proteger e cuidar de tantos outros que conhecemos ou não.
Então, com fé, amor ao próximo e senso de responsabilidade, indivíduos, famílias, governos e instituições, somam esforços, reinventam suas práticas, esquecem as diferenças e inauguram uma etapa inédita para as últimas gerações.
Em meio a este cenário de comoção e colaboração, acabo de ver na internet o vídeo de uma senhora dizendo, “Não quero viver de dinheiro do governo, quero sair de casa e trabalhar”. Feito o estrago! Em poucas frases, a triste senhora, pinta com palavras um quadro tenebroso, repleto de preconceitos, notícias falsas, egoísmo e desprezo à ciência e cidadania. Pior que o quadro pintado é o papel exercido, tendo em vista que tal posicionamento reverbera as ideias e sentimentos de uma pequena parcela barulhenta da sociedade brasileira.
Mas antes de condenar ou julgar as pessoas que propagam tais ideias, é importante refletir quais caminhos levaram tanta gente a ter vergonha e repulsa à cidadania.
Acredito que se mapearmos as trilhas, consigamos propor novas rotas para quem se perdeu em meio a uma névoa de ódio misturada com a negação da ciência e do amor ao próximo.
Que tal começar pela ausência de identidade. Quando se confunde o direito de acesso à Renda Básica de Emergência com a ideia de dependência do dinheiro do governo, se escancara a inexistência de qualquer sentimento de pertença em relação a condução e construção do país. É preciso que essas pessoas relembrem que pagam impostos direta ou indiretamente, possuem direitos e deveres e vivem em sociedade, logo o dinheiro não é “do governo”, mas da população que, de acordo com o regime tributário atual, proporcionalmente quanto menos ganha mais contribui.
Em segundo lugar é preciso falar do individualismo exagerado. Independente da visão política de mundo, há consenso de que ao decidir viver em sociedade temos um compromisso com o outro que transborda os limites de nossas relações de amizade e parentalidade. Em uma situação de calamidade extrema, negar as possibilidades de solidariedade e apoio mútuo moderadas, apoiadas e financiadas pelas instâncias de governo, significa negar a própria condição humana. Em nome do bem comum é preciso enfrentar e vencer o desejo inconsciente de olhar para a vida como um grande jogo, em que só são considerados aptos a serem reconhecidos aqueles que acumulam vitórias ao longo da jornada. É chegada a hora de nos sentarmos entre amigos e familiares para refletir e perguntar em voz alta, “que papo é esse de vencer na vida”?
Por fim é preciso falar da necessidade de um tratamento intensivo que cure as feridas da desinformação. Apenas como um exemplo é necessário observar que, ao chamar A Renda Básica Emergencial de Voucher, profissionais da imprensa e gestores públicos, contribuem para desconstruir todo o acúmulo dos debates fundamentais na a viabilização da ideia enquanto política pública. Cidadãos envergonhados, compartilham notícias que levam a população a confundir direito com favor ou pior com privilégio. A vergonha de ser, dá espaço para o orgulho de ter a qualquer preço, mesmo que o tal preço seja a perda de um ente querido ou da própria vida para o Covid-19.