QUEM CRIA ESSES MONSTROS?

por: Aurimar Pacheco Ferreira

O motoqueiro desceu do seu veículo diante do número vinte e um, e inexplicavelmente disse como se conversasse com um de seus tios já extintos, mas detentores do domínio da natureza: não tem uma nuvem no céu, véio! Que noite linda!

Respondi com um sim e o sorriso automático próprio dos cosmonautas de Carl Sagan, percebido pelo trejeito da voz.

Embora já passasse das vinte e duas horas e quarenta e quatro minutos da noite de um dia em que fazia setenta e três anos da vida já acabada da minha única e primordial irmã de sangue, na moral, olhei para o cara como quem quer passar rápido o mastecard e consumir o pedido de trinta e oito minutos atrás.

Aquele cidadão, todo encapotado no seu traje delivery-man, capacete ornado com desenhos abstratos que a pouca luz me economizava não ver, era um protótipo de extra-razão, a transfiguração da chamado cyborgue, homem como extensão de máquina, agravado pelos 15o celsius do ambiente. Sua faceta humana me escapou e nunca mais saberei quem era.

Ele se aproxima e continua a proposta de diálogo extemporâneo enquanto cumpre o protocolo de cobrança: eu aqui trabalhando e um monte de gente escondida e acovardada por essa doença que eu não vejo. Sabe?! continuou eloquente, não conheço ninguém “desses milhão de gente doente e morrida que a imprensa fala”. Quer sua via?

 Não quis. Era fácil reconhecer o perfil de mais um “negacionista de ocasião”. Um arauto da desilusão. Criatura de bem, trabalhadora, esforçado na sua dimensão de homem do povo que caiu na manipulação dos pulhas plantonistas que vieram do bueiro da história nos dizer que “não”, que quase meio milênio de anos depois de pura evolução, os “sims” consagrados e passados a diante pela espécie humana aperfeiçoada, nunca acabada, estão errados.

Isolei a análise e foquei com a volúpia dos habitantes da ilha da caveira, aquela do filme de 2005 no qual a Naomi Watts abalou as coronárias do primatão como a loira-progesterona que irá prevalecer ao bicho, aos frames, à bilheteria e comecei rápido, nos tempos do corona, os  rituais de assepsia das encomendas, antes de desembrulhar de vez a pizza e os líquidos adequados para entrar no circuito freezer-growlercaipira e um juízo disponível para ser alterado.

Não, hoje não é sábado e sequer amanhã é feriado, mas há motivos de sobra para Damiel e Cassiel personagens de Win Wenders(1987) em Asas do Desejo,  gravitar na tela retrô e me fazer pensar no anjo que cansou de ser anjo, na alegoria de muro que dividia o mundo, o de Berlim, de uma razão de paz aquecida que lhe comoviam a divina existência, na encruzilhada e bifurcação histórica do olhar cultural.

Impressões que chegadas até aqui pressupõem um percurso, a caminhada da criatura que se assemelha com todos nós que somos o projeto dos anos que querem a normalidade dos estranhos: a tal da modernidade em frangalhos na qual seríamos felizes.

Não haverá pizza ou lúpulo que nos impeça de vencer pelos neurônios os impasses da sabedoria. Mentira. Vejo na Avenida Paulista, na Esplanada dos Ministérios ou na Doca de Souza Franco em Belém, explicação do Pará, centenas de bípedes alucinados em verde e amarelo gritando frases sórdidas que exigem sua própria extinção. Gente que quer coisas desconexas e irracionais. Quem cria esses monstros??Pensei.

Talvez você e eu. Certamente um pouco de nós quando imaginamos com pouca energia o que podemos fazer com o melhor de nós.    

Talvez sejamos espíritos esquivos, e tenhamos pensamentos induzidos pelo acaso. Somos os detentores de uma vontade que migra entre o Habib’s e a revista Caras, descoberta pela loteria da natureza que parece nos prometer a glória dos tempos perenes, atuais e futuros.

Nesse vácuo de paixões vêm a tona os seres do reino monera que proliferam uma onda pútrida, fétida, polissêmica de excrescência social, que depois de ruminada nos domingos pela manhã, são vomitadas democraticamente nos jardins e esquinas das grandes cidades, com direito a câmeras de registro.    

Argh!!! Que nojo! Mas não nos desculpamos dessa entrega indesejável.

A propósito de ser 21, do século 21, temos as repercussões do Yuval nas suas 21 lições. Na 15, o semita crava, “Assim como é preciso uma tribo para criar uma criança, é preciso uma tribo para inventar uma ferramenta, resolver um conflito ou curar uma doença. Nenhum indivíduo sabe tudo o que é preciso para construir uma catedral, uma bomba atômica ou uma aeronave. O que deu ao Homo sapiens uma vantagem em relação a todos os outros animais e nos tornou os senhores do planeta não foi nossa racionalidade individual, mas nossa incomparável capacidade de pensar juntos em grandes grupos”.

Uall!!!! Moisés pós-verdade fechando os abismos da contemporaneidade. Precisamos ser mais severos com aquilo que apenas parece que é.

Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, nós haveríamos de lembrar que entre tantas distorções, teríamos um tal de astronauta de mármore usurpando David Bowie e a própria concepção de evolução cósmica. Devemos isso ao firmamento.

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