O MENINO QUE CAIU

por: Jobis

Quando recebi a triste notícia da morte do pequeno Miguel Otávio, morto após a patroa da sua mãe deixá-lo sozinho no elevador do prédio e travei contato com a indignação quase geral que assolou a Internet, recordei vários momentos de minha biografia através de um ângulo totalmente diferente: as experiências que tive com as ditas “empregadas domésticas”, mas também com seus filhos. No primeiro deles eu era muito pequena. Não lembro do nome, não lembro da mãe, mas lembro da criança: idade perto da minha, ao chegar lá em casa, foram logo dizendo pra ela não tocar em nada. Achei estranho: por que uma menina, como eu, não poderia tocar em nada? Perguntei, alguém explicou que era porque era “filha da empregada”. Entendi menos ainda. O que tinha a ver?

Cresci ouvindo as piadas de preto dos Trapalhões. Só depois entendi que eram naturalização do racismo. Uma forma de pessoas negras adentrar no “mundo dos brancos” é fingir que elas não eram a piada e rir com seus opressores. Como descendentes dos escravos que ainda hoje não possuem direitos mínimos assegurados, boa parte do “pessoal de serviço” possui a pele mais ou menos escura. Isso é naturalizado.

Normalmente não questionamos e demoramos a entender por que tem a ver com racismo e porque discutir isso é importante. Está tão naturalizado, que a maioria não admite sequer que exista um problema, menos ainda que podemos fazer parte dele. A naturalização levava minha família a achar normal ter uma menina de 11 anos dormindo sob nosso teto, perto do galinheiro e do canil, em um quartinho feito só pra ela, o “quartinho da empregada”, naturalmente o pior da casa. A ideia era que ela trabalhasse o dia todo e de noite fosse estudar, a tempo de voltar e ainda arrumar a cozinha do jantar. Quando ela desistiu, porém, lembro que disseram que ela era burra, limitada e não aproveitara a oportunidade de virar gente.

Lembro que tentei entender por que o quarto dela era tão pior que o meu e por que ela, apesar de ser criança, fazia todo trabalho de casa. Disseram que ela era sortuda por estar conosco, porque ela agora tinha o que comer e que, como era uma pessoa pobre, aquele quartinho para ela estava bom demais. “Quem estuda é carga de burro; quem não estuda, é burro de carga”. Eu ia pra escola de manhã cedo, depois de tomar um bom café da manhã que eu não precisava preparar, para ter cinco aulas garantidas; ela ia pra escola depois de trabalhar o dia inteiro, a pé e voltando a pé, por ruas pouco iluminadas, com aulas certamente muito menos minuciosas que as minhas, quando havia professor. Não era como se o nosso estudo fosse o mesmo. Eu comia na sala de jantar, enquanto ela comia na lavanderia. Ninguém me disse isso claramente, mas estava claro que pessoas que tinham mais recursos mereciam coisas melhores, mas todas seriam julgadas como se tivessem oportunidades iguais.

Não é problema nenhum trabalhar de empregada doméstica, diziam, quando eu dizia essas coisas. “Sua mãe já trabalhou, fulana já trabalhou. Nós a tratamos como se fosse da família.” Não sei quem me ensinou a musiquinha racista da minha infância:

“nega do sovaco fedorento

rela a bunda no cimento

pra ganhar 1500”.

Perguntei pra ela o que significava e ela disse que “não era nada não”. Como criança, eu sentia que ela estava mentindo, mas não sentia que podia confrontar.

Numa noite, eu com asma, a festa da família não podia ser adiada, fiquei sozinha com ela. Lembro da minha respiração cada vez mais difícil, o esforço visível para cada tomada de ar. Primeiro eu estava na cama, ela do meu lado, fazendo que eu tomasse mil coisas. Depois ela me carregando no colo, me embalando, pra cima e pra baixo, e nada fazia passar. Ela ligava pra casa onde meus pais deveriam estar, mas eles não estavam. Eu deitada no chão, as pedras de paralelepípedo debaixo de mim. Depois uma manta, ao meu redor ela risca fósforos, acende velas, faz evocações. Sobre mim o céu imenso e o meu mal-estar que cedia devagarinho, ela chorando de alívio, eu cochilando, pouco depois, nos lençóis macios da minha cama cor-de-rosa.

No dia seguinte, mencionei pros meus pais que as velas dela me tinham curado. Pra quê? Críticas, impropérios, aquilo era uma casa cristã. Eu então me adiantei. Disse que tinha mentido. Que eles me deixaram sozinha e eu queria que se sentissem culpados. Apanhei, para aprender a deixar de ser mentirosa. Aí ela veio me perguntar o que era e foi minha vez de dizer que “não era nada”. Ela sabia que eu estava mentindo, mas sentiu que não podia confrontar.

Minha infância e adolescência foram povoadas dessas histórias e o sentimento que me enchia antes e agora é de extrema vergonha. O meu lugar de fala é de uma mulher branca treinada para ser racista que tentou não ser, mas eventualmente foi.

Na adolescência, minha mãe viajava muito e me deixava com outra menina, da mesma idade que eu, vinda do interior.  Ali eu era mais velha, uns 14 anos. Foi dela que ouvi o primeiro relato de estupro. Lembro de abraçá-la, a gente chorando juntas a impotência de não poder mudar o passado.  A maioria das boas lembranças daquela época foram com ela. Apesar de ser pouco mais velha que eu, tentava cuidar de mim como se fosse bem mais madura.

Daí ela conheceu um cara e teve a louca ideia de apresentar pra minha mãe. Ora, mesmo que ela não fosse encontrar o cara ali em casa, queria que minha mãe, sua suposta benfeitora o conhecesse. Ainda lembro das coisas que minha mãe disse pra ela e tenho tanta vergonha, que mais de 20 anos depois, não ouso repetir. Lembro dela dizendo “que negrinha atrevida!”, quando contava para as amigas a ousadia da moça. Deu-lhe 24 horas pra sair lá de casa. Ainda lembro da menina dizendo que não tinha pra onde ir e minha mãe mandando ela ir pra casa do cara.

Liguei para todos meus amigos, narrando o fato. Alguém, pelo amor de Deus, poderia acolher minha amiga? Ninguém. Acabou que ela foi trabalhar na casa de outra família e fui proibida de vê-la. Hoje acho que o relacionamento com minha mãe nunca se recuperou totalmente disso.

Casada, tive empregadas. Várias. Uma delas, por força da necessidade, levava a filha pra nossa casa. Nunca conheci menina mais quieta na vida. Ficava em casa, à mesa, fazendo as lições da escola enquanto a mãe dela terminava de trabalhar para irem pra casa. Lembro da mãe agradecer mil vezes por termos permitido que ela ficasse com a gente, e eu nunca sabia o que dizer. Não era como se eu estivesse fazendo um grande favor.

Nessa semana o menino caiu. A patroa da mãe colocou-o no elevador, apertou o botão e ele caiu do prédio. Uma tragédia anunciada. Ela jamais colocaria sozinho no elevador sangue do seu sangue; jamais faria isso com a filha de uma amiga, com a coleguinha de uma filha, menos ainda com seus netos, se algum dia tiver um. O que atraiu toda atenção foi a tragédia: o menino caiu. Ele pulou do nono andar para encontrar a mãe. Mas coisas como essa acontecem todos os dias, especialmente se for filho do “pessoal de serviço”.

Ninguém se importa com essas crianças. Era cultural os filhos dos patrões terem sua iniciação sexual com prostitutas ou as empregadas, e ninguém ligava se fossem menores de idade. São corpos sem idade. Tanto faz se forem velhas, crianças. Tanto faz. Têm os mesmos deveres, mas raramente os mesmos direitos.

Hoje, em algum lugar, uma criança entrou num quarto de brinquedos que era maior que a casa dela e ouviu “não toque em nada!”. Em algum lugar, uma criança ficou chamando a mãe e a mãe foi impedida de buscá-la, porque o cachorro da patroa, para os donos dos meios de produção, era mais importante que o filho de alguém.

Sari agiu de forma monstruosa, mas ela não é a única. Pro seu azar, o menino morreu. Em algum momento ela aprendeu que respeito é seletivo; aprendeu que a mesma babá que cuidava dela nas noites de febre era descartável. Em algum momento ela entendeu que os seus cachorros valiam mais que as lágrimas de um menininho que só queria ficar perto da mãe.

Há quem diga que não existe racismo no Brasil, que os negros é que têm preconceito consigo mesmos. Ainda hoje, com quase 40 de idade, não sei se esse pensamento vem de uma abissal maldade ou uma ingenuidade enceguecida, mas estou certa de que, seja qual for a resposta, vem de uma mente doentia. Sim. Doentia. Porque, pro racismo começar a ser extinto, tem que ser feio, mais feio que arrotar à mesa; tão feio quanto abandonar uma criança em um elevador.

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