Pelo Mês de Luta das Pessoas com Deficiência

por: Joyce Guerra Jobis

Eu acho que devo ganhar um prêmio qualquer por ingenuidade, porque só na vida adulta eu entendi o meu lugar no mundo”, não o meu lugar de fato, mas o lugar que se esperava que eu ocupasse: o lugar de uma pessoa com deficiência. 

Claro, eu entendia que era diferente, mas todo mundo era, de alguma maneira, e nem por isso todo mundo era definido por suas diversidades como se fosse um selo atestando baixa qualidade à revelia de qualquer avaliação objetiva.

Nunca tive vergonha por não enxergar. Não foi algo que eu fiz a mim mesma, mas uma coisa que aconteceu, né?  Então, não era minha culpa. 

Tampouco nunca pensei que fosse a coisa mais importante a meu respeito. Na verdade, pra mim, é uma característica, como tantas outras, que podiam ser positivas ou negativas, de acordo com as circunstâncias e minhas habilidades para lidar com elas.  Não sentia que não enxergar era a coisa mais difícil da minha vida,  – tenho dificuldades que, pra mim, impactam muito mais. 

Então foi um choque quando eu descobri que, pro senso comum, tudo que eu era ou viria a ser, tudo que eu realizasse ou no qual falhasse, estaria resumido a essa característica minha que, pra mim, nunca foi tão importante assim. 

Ao mesmo tempo, quando constatei que meu lugar era tão pequeno, que nem chegava a ser um lugar, é um não-lugar, uma negação de que eu tivesse um lugar, foi um entendimento aterrador. 

Talvez  o pessoal imigrante ou idoso ou negro  consiga empatizar de alguma maneira. 

Bateu uma tristeza muito grande, não só por mim, mas por todos meus amigos com deficiência, e pelas crianças também. Num segundo momento esse sentimento abrangeu as pessoas que, sem sentir, sem saber, replicavam essas estruturas de preconceito: isso deveria afetá-las, de alguma maneira, de modo que as incluí  no meu pesar.

O determinismo em torno da deficiência é muito pior que a deficiência em si. 

Outro dia estava lendo um livro sobre uma garota imigrante. Como imigrante, ela sentia que deveria ser sempre 4 vezes melhor que as outras pessoas e, ainda assim, sempre seria aquela que veio de fora. A estrangeira. A que “não deveria estar ali”. É bem assim que eu me sinto algumas vezes, e sei que não sou a única. De fato, Muitos acreditamos que devamos ser quatro vezes melhor, esforçar ainda mais que o mais esforçado, para aí, então, quem sabe, sair do patamar de ser visto como um peso, um onus para a sociedade para ser percebido como um ente inspiracional, mas, ainda assim, notem, não um indivíduo íntegro.

A deficiência é repelida por ser o desmoronar inequívocode uma ilusão de perfeição e infalibilidade humana. 

É assustador ver que pra muita gente pessoas como eu somos “outro tipo de indivíduo. Não “uma pessoa que não vê, ou não ouve, ou não anda, ou que tenha uma questão neurológica ou cognitiva”, mas de alguma outra espécie qualquer. Esse paradigma permeia a hhistória, transborda dos discursos. É emblemático observar que, internacionalmente, estejamos pedindo para sermos nomeados “pessoas” com deficiência. Ora, se um clamor global se ergue solicitando algo, é bem possível que seja real. . O que mais impressiona aqui não é a questão semiótica, mas que precisemos pedir. Justificar. Insistir para sermos reconhecidas como… Pessoas.

Então comecei a entender que o problema não estava apenas na deficiência, nem em como ela era pensada e construída socialmente, mas nas lentes que a gente usava pra ver a diversidade, em geral, e mesmo a nós mesmos. Ou será que a ordem correta deveria ser “a nós mesmos, e portanto os outros”?

Fato é que o preconceito não é privilégio das pessoas sem deficiência, tampouco restringe-se apenas às diversidades corporais aparentes. O “normal” é só aquilo que estiver mais perto de como eu entendo a mim mesmo. Tudo que diverge, precisa ser catalogado, acima ou abaixo de mim, tornando-se alienígena, anormal, estrangeiro, incompleto, impróprio. A medida do mundo é a moldura do meu espelho. 

Assim “a mulher que não é direita” precisa ser alguém bem longe de mim, para preservar meu lugar. Eu, “cidadão de bem”, preciso ter fronteiras que deixem bem claro para mim mesmo que eu não sou como aqueles outros. Esse outro que não sou eu, que não me diz respeito, que me causa estranheza por sua nacionalidade, por suas crenças, por seus corpos, por suas descrenças… E assim eu vivo a catalogar, e, quanto mais eu catalogo, mais me sinto sozinho. Mais me sinto ansioso, porque o mundo é assustador, e mais eu me sinto tenso, porque eu fico tentando rejeitar incessantemente um mundo de diversidade que a todo tempo busca romper minhas fronteiras, ocupar os espaços, exigir um pertencimento que eu não lhe dei, uma confiança que eu não permiti, até que, por algum motivo, o estrangeiro passa a ser eu. Eu, tão diferente de mim mesmo, que de repente me vejo fazendo o que acreditava que jamais faria, ou sendo quem jamais seria, ou presa de circunstâncias que fugiram totalmente ao meu controle e que mesmo assim me aconteceram, ou melhor: aconteceram sobre mim, a minha própria revelia.

Pode ser sob a forma de uma doença, de um abandono, de uma mentira, – eu como traidor, não como vítima; eu como algoz de mim mesmo e dos mais caros ao meu afeto, de algum modo me tornando muito do que eu tanto repeli.

Então que a questão de deficiência transcende os corpos das pessoas com deficiência. Transcende aquilo que elas podem ou não fazer, quanto elas são capazes ou incapazes, sob qualquer ponto de vista, para tornar-se um tema plural. Universal. Multifacetado e transversal. 

Enquanto pensarmos na inclusão como um favor que pessoas normais façam aos outros, estaremos vendo por um ponto de vista pobre, limitado e impotente para atender a todas as demandas, que não são apenas *dos deficientes*, mas da experiência humana, em geral. 

Sim, trata-se de entender a nossa história, a história dos excluídos, a história dos “sem lugar”; a história dos segregados, dos exterminados. Só que essa história acaba tendo muitos pontos em comum com outras histórias de exclusão, silenciamento, invisibilização e extermínio, pra seguirmos  ignorando as conexões.

Então começamos a refletir sobre a transição do modelo clínico da deficiência – deficiência como doença, deficiência como problema, deficiência como defeito de alma, o corpo denunciando uma certa ausência de caráter, até, passando a ser vista como uma realidade biopsicossocial, como uma característica, não necessariamente um problema, menos ainda um defeito promotor de anormalidade.

Mas aí, novamente, a gente começa a fazer pontes com outros processos análogos, embora não diretamente ligados à perda de possibilidades físicas. 

O *filho deficiente* era abandonado ou vivia preso num quartinho, enquanto o *filho homossexual* era expulso de casa e negado pela família. Julgado, condenado e desprezado. por ser diferente. 

No presente, A mulher com deficiência é, muitas vezes, vítima de abuso sexual por ter uma deficiência, mas a mulher negra comumente é estuprada pela sua cor de pele também, isso para não falar nas que, com deficiência eram enviadas para lares / sanatórios, enquanto outras, por uma infinidade de razões culturais, para conventos ou quaisquer lugares onde pudessem ser esquecidas. 

Costumamos desmembrar as pautas, o que tem seu valor em termos de especificidades, mas também precisamos vê-las como um conjunto, para que nós, enquanto sujeitos sujeitos à história, mas também dela protagonistas, possamos nos curar de percepções arcaicas e prejudiciais a todos, inclusive a nós mesmos.

Ainda há mais: A história de abusos e omissões sobre as pessoas  fora dos estereótipos, em geral, é a história protagonizada também pelos ditos dentro dos padrões aceitáveis – bem nascidos, bem parecidos, bem situados – que mesmo assim, na falta  de qualquer dos vários signos passíveis de gerar opróbrio excludente,   agridem-se e se destroem, porque é impossível perpetrar a violência sob qualquer forma sem ser dela vítima também, embora sob diferentes formas, está claro: uma pessoa branca jamais vivenciará diretamente a violência associada ao racismo, mas o fato de externar estruturas de pensamento racista fatalmente lhe causará sofrimento, mesmo que ela não associe a causa.

Uma pessoa com um corpo totalmente funcional que replique estruturas de preconceito ou discriminatória não enfrentará a invisibilidade, o capacitismo, as barreiras atitudinais e a exclusão, mas sua forma de se manifestar no mundo perante a diversidade forçosamente a prejudicará, em outras áreas da vida. 

Quantas mulheres com corpos perfeitamente funcionais e “com a cor de pele certa” se martirizam por terem sido formatadas com um ideal de beleza insustentável? Quantos jovens com todas as possibilidades não conseguem suportar o peso da própria existência, e por isso hostilizam os seus companheiros, supostamente menos inteligentes, menos belos, enquanto amargam gravíssimos problemas de auto-estima? 

É ilusão pensar que precisamos de um outro muito diferente para excluir e segregar. 

A história prova que nós, seres humanos em geral, não somos bons em aceitar. Ponto. Quem e como é matéria de evidência: muda o contexto, mas persistem os fatos. 

Ainda hoje, , tudo se exige e se espera de todos nós, menos que sejamos bondosos e compassivos. A gentileza e a sencibilidade  ainda estão  culturalmente associadas à fraqueza. 

Não vejo uma forma de eu poder incluir alguém que tenha um corpo tão diferente do meu, ou crenças, se eu não consigo ver meu semelhante como igual, por mais semelhante que ele seja. Não igual no sentido de idêntico, mas igual no sentido de valor intrínsseco.

Foi assim que na minha cabeça tudo se juntou. A luta por inclusão se juntou com a divulgação da não-violência; a tentativa de humanizar pessoas com deficiência se mesclou com a busca por me capacitar para acolher pessoas, independendo de caracteres específicos; a luta por explicar que “cuidar de uma pessoa com deficiência” não significa necessariamente fazer pra ela, mas obrigatoriamente ouvi-la passa por perguntar para as pessoas com quem me importo se tem alguém que possa cuidar delas, literalmente.

Houve um tempo em que eu quis muito ser vista além de uma pessoa com deficiência. Eu queria ser respeitada como estudante, sem ser aquela aluna cega; eu queria ser considerada uma boa esposa, sem ser “a cega que é casada e só por isso deve morar unum chiqueiro; . Eu queria ser só uma pessoa como as outras. Num mundo em que cada vez menos gente quer ser “só mais um” (Deus me livre ser só mais um na multidão!), onde todo mundo quer ser influenciador, eu só queria ser vista por quem eu era.

Agora entendi que isso não vai acontecer. Não vai ser possível. Não importa o que eu faça. Posso fazer 10 vezes mais ou menos. Posso escrever mil livros e quebrar lá qualquer que seja o recorde de expectativas baixas que se tenha sobre pessoas como eu. Para a enorme maioria, o mais longe que eu chegarei é ser “exemplo de superação”, por mais discriminatória seja essa definição, pra quem já pensou no assunto.

O mês de luta das pessoas com deficiência é o mês da nossa resistência. Da nossa insistência em não apenas pertencer, mas contribuir com uma sociedade que, historicamente, ofereceu-nos basicamente migalhas da sua piedade e dos seus recursos. Onde tantas pessoas com corpos perfeitamente funcionais fazem de tudo para não trabalhar, muitos de nós lutamos pela oportunidade de um emprego digno que nos possibilite produzir e crescer; onde tantos companheiros desprezam todas as alternativas, nós seguimos lutando pelo acesso ao básico, e ainda precisando  insistir.

É por isso que não me envergonho da minha bengala, dos meus olhos desiguais, desse meu jeito de conhecer o mundo com a ponta dos dedos, e ler com a ponta dos dedos. Na verdade, enquanto a maioria tem pena de gente como eu, confesso que tenho orgulho. Não só de mim, como pessoa, nem de tantos amigos batalhadores e dignos que se recusam a serem só deficientes, mesmo com tanta gente os empurrando para esse lugar, mas orgulho desse segmento, como um todo. Porque, através da nossa luta, da nossa força, do nosso amor, podemos semear reflexões, ensejar questionamentos e, portanto, mudanças, não apenas sobre nossa condição, mas também sobre as formas como as relações se envolvem e se desenvolvem. Quantos benefícios para todos foram conquistados, na pedagogia, na tecnologia, na arquitetura, tendo sido pensados, em primeiro lugar, para pessoas com deficiência? Não pensamos constantemente em como pessoas com deficiência contribuem na filosofia, nas artes, não meramente como exemplos estereotípicos, mas como indivíduos cuja experiência ativa com a diversidade ampliou percepções que poderão contribuir ativamente para o amadurecimento do meio em que estejam, mas isso acontece. 

Sob esse prisma, a diversidade imposta pela deficiência sai do paradigma eminentemente negativo, exigindo sua eliminação para a vivência qualitativa da existência humana,, para tornar-se uma possibilidade de, não apenas existir, mas também de colaborar positivamente, não *apesar da deficiência* mas por causa dela.

O mês de luta das pessoas com deficiência não é apenas o nosso mês, nem o dos nossos familiares e professores; é o mês de todos aqueles que acreditam que pessoas são muito mais que aquilo que as distingue: são tudo aquilo que as faz vibrar.

Embora a luta das pessoas com deficiência tenha características históricas e culturais próprias, com bandeiras inerentes ao processo que lhes é peculiar, é preciso compreender que nossa luta se entrelaça a outras lutas humanas por dignidade, direito de pertencimento e de oportunidades equivalentes. A busca de direitos e cidadania das pessoas com deficiência não está tão distante dos anseios e das lutas da comunidade negra, dos grupos lgbt+ de outros tantos. Que não nos falte clareza e disposição para o diálogo; que não nos falte a coragem de questionar o sistema, mas também a nós mesmos. Que nos sobre disposição para exigir nossos direitos, tanto quanto para assumir nossas responsabilidades.

Que possamos, cada vez mais, abrir mão das narrativas heróicas de exemplo para conquistar o direito de sermos vistos para além daquilo que aparentemente nos falta, ocupando, assim, nosso lugar na história, a começar pelo protagonismo da nossa própria biografia.

Voltar